A função social do contrato é uma cláusula geral que norteia a liberdade de contratar, contorna a interpretação e auxilia na aplicação efetiva do contrato. É o princípio que cria e assegura direitos e deveres aos contratantes com base nos limites da intervenção do Estado na economia das relações contratuais privadas (dirigismo contratual) garantindo a eficácia dos bons costumes, da moralidade, da eticidade, da boa-fé objetiva e do interesse coletivo sobre aquela relação jurídica [1]. 

Essa limitação da liberdade do cidadão em contratar a partir dos contornos do dirigismo contratual está exposta no artigo 421 do Código Civil:

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

Walter Polido aponta que o limite imposto pela estrutura contratual é imperativo, sendo que “o Estado deve assumir o controle geral, acima dos interesses individualizados” para harmonizar as diferenças de interesses cada indivíduo em detrimento da supremacia do interesse do grupo atrelado àquela relação jurídica, sendo ela a contraprestação que a sociedade pós-moderna paga para viver em harmonia:

“Não há dúvidas de que a lei liberta ao conceder direitos, mas também limita a atuação do homem em sociedade. É o tributo que a civilização paga para poder viver em harmonia, em razão das diferenças encontradas em cada um dos seus indivíduos. De modo que o confronto entre os mais diversos egoísticos e o desejo geral pela paz social possa ser minimizado, prevalecendo o sentimento grupal, a lei é cogente, determinando regras a serem cumpridas.” [2]

Na prática, ela serve como instrumento mutável e versátil ao julgador e/ou ao intérprete do contrato para adequação dos direitos e deveres contratuais à realidade atual (usos, costumes e práticas negociais) daquele momento histórico e em uma determinada sociedade.[3]

A função social do contrato é preceito ordem pública que permeia todo ordenamento e as relações jurídicas a partir dos princípios constitucionais fundamentais i) de proteção da dignidade da pessoa humana (CF/88, inc. III, art. 1º), ii) na busca de uma sociedade mais justa e solidária (CF/88, inc. I, art. 3º), iii) da igualdade de todos (CF/88, art. 5º “caput”) e, essencialmente, iv) a valorização da função social da propriedade (CF/88, incs. XXII e XXIII, art. 5º; incs. I e II, art. 170); [4]

O art. 421 do CC tem estreita ligação com o art. 422, que fixa a imperatividade da boa-fé como outro pilar do exercício de contratar:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

A função social do contrato foi uma das mais impactantes inovações do CC/02 como ensinado por Miguel Reale, uma vez que se materializa e personifica através dela as exigências de eticidade e socialidade na relação jurídica, já que o exercício de um direito individual não pode exceder ao coletivo. [5]

No seguro a função social e a boa-fé norteiam a operação mutual garantindo contratualmente a reparação dos danos decorrentes do risco coberto. Fábio Ulhôa Coelho ensina que a pulverização do risco através do mutualismo ancorado na técnica atuarial é a construção da própria função social do seguro: “A função do seguro é a de socializar, entre as pessoas expostas a determinado risco, as repercussões econômicas de sua verificação [...] a socialização dos riscos, também chamada mutualismo, é a função econômica da atividade securitária.” [6]

O mutualismo é o coração da operação securitária. É por ele que as seguradoras pulverizam na quantidade de elementos expostos aos mesmos riscos diminuindo, assim, a severidade dos impactos decorrentes dos sinistros ocorridos. Dessa forma, fica clara a relação fim diretamente existente entre a operação do mutualismo e o preceito indenitário do seguro, que é o que personifica a função social do seguro. Quanto ao preceito indenitário do seguro, Ernesto Tzirulnik aponta:

“A coletividade se segurados não se une, através das contribuições de prêmios para a formação do fundo comum administrado pela seguradora, para praticar jogo que premie alguns, mas sim para prover garantia em benefício de todos. Essa é a função social do seguro.” [7]

No seguro de responsabilidade civil geral o preceito indenitário tem destaque na configuração da sua função social, vez que o ordenamento jurídico visa a reparação ampla e irrestrita dos danos ocorridos para reestabelecimento do equilíbrio e da paz social por meio da proteção patrimonial do cidadão injustamente lesado e do segurado culpado pelo prejuízo. Ambos os interesses – do segurado e do terceiro prejudicado – englobam a função social do contrato de seguro de responsabilidade civil de uma forma ampla. Assim, o segurado que, agindo ou se omitindo com negligência, imprudência e imperícia causa, causar dano a terceira cometerá ato ilícito e está obrigado a reparar o dano na exata extensão de seu montante (CC, arts. 186 [8] , 927 [9]  e 944 [10] ). Para essa estrutura geral de responsabilização civil, o art. 787 do CC alicerça o seguro de RC:

Art. 787. No seguro de responsabilidade civil, o segurador garante o pagamento de perdas e danos devidos pelo segurado a terceiro.

Uma das vertentes deste seguro é dar liquidez à reparação dos danos oriundos da complexidade da vida atual sob o aspecto do terceiro prejudicado; sob o aspecto do segurado, o seguro de RC tem a função de proteção do seu patrimônio em face da responsabilidade civil. Walter Polido aponta que em geral, “o seguro de responsabilidade civil tem a função de proteger o patrimônio do segurado, a partir da obrigação legal que ele tem de indenizar quem sofreu dano ou prejuízo por ele causado, ou por pessoa ou coisa sob a sua responsabilidade.” [11]

A cobertura básica do seguro de responsabilidade civil tem efetivação eminentemente jurídica.  Em outras palavras, o segurado somente poderá acionar o seguro com a existência de uma sentença condenatória transitada em julgada ou a assunção de culpa perante o terceiro para realização de acordo desde que com autorização expressa da seguradora. A exigibilidade do seguro não está na ocorrência imediata do sinistro, do dano ou do acidente em si. Estes elementos decorrentes do sinistro devem se encaixar no o risco coberto; porém, para a garantia ser devida, o seguro exigir i) sentença ou ii) autorização de acordo.

O art. 5º da Circular SUSEP n. 437/12 é padrão:

“Art. 5º. No Seguro de Responsabilidade Civil, a Sociedade Seguradora garante ao Segurado, quando responsabilizado por danos causados a terceiros, o reembolso das indenizações que for obrigado a pagar, a título de reparação, por sentença judicial transitada em julgado, ou por acordo com os terceiros prejudicados, com a anuência da Sociedade Seguradora, desde que atendidas as disposições do contrato.”

Pelo fato da função social do seguro de RC englobar interesse de ambos os envolvidos na responsabilidade civil – segurado causador do dano e o terceiro vítima – e pelo fato da seguradora exercer empresarialmente a administrativa da mutualidade é o que § 2º, do art. 787 do CC [12] veda expressamente que o segurado assuma a culpa ao terceiro e/ou confesse no processo judicial, sem que a seguradora concorde.

Esta proibição legal restringe a liberdade do segurado em assumir a culpa pelo evento é a mais clara manifestação jurídica da intensidade que a função social deste seguro exerce na sua operação diária. Nota-se, ainda, que essa situação se alterna a partir da fixação de obrigatoriedade da contratação do seguro. Walter Polido aponta, com razão, que, nos seguros de responsabilidade civil obrigatório, a função social alterna-se da proteção patrimonial do segurado para a pacificação da vida social afetada pelo dano através da efetiva reparação do dano. Ou seja, alternação o foco central da função social que se busca com a obrigatoriedade da contratação: “Quando o seguro de responsabilidade civil tem caráter obrigatório, pode-se afirmar que o seu objeto é outro, uma vez que o Estado visa, tão-somente, a garantia efetiva da possibilidade de reparação da(s) vítima(s), socializando a repartição dos prejuízos, através do mutualismo representado pelo sistema de seguros.” [13]

Esta alternância é fundamental para demonstrar que a função social não é conceito estático e previamente determinado com aplicabilidade irrestrita e uniforme para as espécies de seguro. O dinamismo conceitual e a mutabilidade são da sua essência. Muda-se a natureza do contrato, muda-se sua substância; mudam-se as concepções social, mudam-se seus elementos de caracterização. Este é traço marcante da sociedade e do ordenamento jurídico na pós-modernidade. 

[1] DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. Vol. 2 – D – I, 2ª edição, revista, atualizada e aumentada, 2005, p. 705/706: “Princípio pelo qual o contrato cria e assegura direitos e deveres como instrumento do interesse dos contratantes e do interesse social, atendendo as restrições trazidas pelo dirigismo contratual. Tal dirigismo contratual é a intervenção estatal na economia do negócio jurídico-contratual, mediante a emissão e aplicação de normas de ordem pública, o atendimento aos bons costumes relativos à moralidade social, a adoção de revisão judicial dos contratos, alterando-os, estabelecendo-lhes condições de execução, ou mesmo exonerando a parte lesada, conforme as circunstâncias, fundando-as na boa-fé objetiva e na supremacia do interesse coletivo.”

[2] POLIDO, Walter. Contrato de Seguro – Novos Paradigmas. São Paulo : Editora Roncarati, 2010, p. 231.

[3] Sílvio Venosa descreve que “cabe ao interessado apontar e ao juiz decidir sobre a adequação social de um contrato ou de uma ou algumas de suas cláusulas. Em determinado momento histórico do país, por exemplo, pode não atender ao interesse social o contrato de leasing de veículos a pessoas naturais, como já ocorreu no passado.” E continua, “Eis uma das importantes razões pelas quais se exige uma sentença afinada com o momento histórico e um juiz antenado perante os fatos sociais e com os princípios interpretativos constitucionais.” (Código Civil Interpretado. 3ª Edição. São Paulo : Editora Atlas, 2013, p. 585).

[4] Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos: [...] XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social. Art.170 – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] II – propriedade privada; III – função social da propriedade;

[5] REALE, Miguel. História do Novo Código Civil. Biblioteca de Direito Civil, v. 1. Estudos em Homenagem ao Professor Miguel Reale. Miguel Reale (coord). Judith Martins-Costa (coord). São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, p. 49: “(...) sendo reconhecida a função social do contrato como decorrência da nova compreensão do exercício regular do direito próprio, o qual não pode exceder manifestamente os limites impostos pelo seu fim social ou pela boa-fé e os bons costumes [...] o qual, concomitantemente, as exigências dos princípios de eticidade e da socialidade.

[6] COELHO, Fábio Ulhoa. A aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos Contratos de Seguro. I Fórum de Direito do Seguro “José Sollero Filho” : Anais. Instituto Brasileiro de Direito do Seguro – IBDS (coord). São Paulo : Editora Max Limonad, 2001 – p. 272.

[7] TZIRULNIK, Ernesto. CAVALCANTI, Flávio de Queiroz. PIMENTEL, Ayrton. O Contrato de Seguro de Acordo com o Novo Código Civil Brasileiro. 2ª ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2003 – p. 111/113.

[8Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral comete ato ilícito.

[9Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

[10Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.

[11] POLIDO, Walter. Seguros de Responsabilidade Civil : Manual Prático e Teórico. Curitiba : Juruá, 2013 – p. 237.

[12]  § 2º. É defeso ao segurado reconhecer sua responsabilidade ou confessar a ação, bem como transigir com o terceiro prejudicado, ou indenizá-lo diretamente, sem anuência expressa do segurador.

[13] Ibidem.

(13.08.2019)